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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

OS 300 DE ESPARTA: VERDADE X MITO




Nem o sujeito mais pedante vai assistir a um blockbuster esperando uma aula de história, mas no filme 300, o épico estrelado por Rodrigo Santoro, que relata o confronto entre gregos e persas no ano 480 a.C., abusa do direito à licença poética. O ator brasileiro interpreta Xerxes, o Grande Rei dos persas, e a maneira como o personagem é retratado andou enfurecendo o governo do Irã, país que é herdeiro direto da antiga Pérsia. A fúria tem certa razão de ser: do figurino às motivações políticas, o Xerxes do brasileiro não tem quase nada a ver com a sua contraparte histórica.

O Grande Rei não é o único a virar caricatura em 300. Em parte, a culpa é dos belos e exagerados quadrinhos do americano Frank Miller (nos quais o filme se inspirou e não diretamente em fatos históricos). Para ressaltar o heroísmo dos gregos da cidade de Esparta, que ousaram se opor às forças muito superiores do Império Persa, Miller os transforma num bando de kamikazes, que teriam decidido se sacrificar desde o começo para inspirar as outras cidades da Grécia a resistir ao invasor. “É uma polarização extrema entre mocinhos e bandidos que distorce um bocado a situação real”, resume o historiador britânico Paul Cartledge, da Universidade de Cambridge.

Em 480 a.C., o primeiro combate aconteceu no desfiladeiro das Termópilas, espremido entre as montanhas e o mar no centro-norte da Grécia. Cerca de 7.000 gregos, comandados por 300 espartanos e seu rei Leônidas (Gerard Butler, no filme), foram mandados para fazer frente a 120 mil homens do Império Persa, liderados por Xerxes.

Santoro aparece pela primeira vez numa conversa entre os dois reis, e seu visual é de arrancar os cabelos – se ele tivesse algum, claro. De cabelos (e pêlos) raspados e tanga dourada, o ator brasileiro parece uma estante de piercings, tamanha é a quantidade de adereços metálicos em seu rosto. O look é completado por longas unhas douradas e altura de uns 2,5 m. Primeiro problema: um rei persa depilado era uma coisa impensável. “O rei sempre tinha um bigode e uma longa barba; no caso de a natureza negá-los, dispunha de perucas e bigodes falsos”, diz Barry Strauss, historiador da Universidade Cornell (EUA). Em público, os soberanos persas sempre usavam longos mantos de cor púrpura, capas douradas, uma espada e diadema (coroa) real.

Os exageros na vestimenta ou falta dela ficam pequenos diante da personalidade de Xerxes no filme. Ele se declara, por um exemplo, um deus – coisa que um rei persa de verdade provavelmente acharia um sacrilégio, já que a religião do antigo império era quase monoteísta. Os persas adoravam um deus supremo, Ahura Mazda, que não tinha nada de humano.

O Grande Rei em 300 também é um covarde que quase desmaia ao ver o próprio sangue. No mundo real, Xerxes deixou uma inscrição com os seguintes dizeres:


“Sou capaz nas mãos e nos pés. Como cavaleiro, sou um bom cavaleiro. Como arqueiro, sou um bom arqueiro, tanto a pé como a cavalo.”

É claro que poderia ser só propaganda, mas antes de invadir a Grécia ele havia tido uma carreira militar vitoriosa, derrotando o Egito e a Babilônia, que tinham se rebelado contra ele.

Do ponto de vista político, embora a Pérsia realmente pretendesse acabar com a autonomia das cidades-Estado gregas, Xerxes estava longe de transformar a vida de seus súditos num inferno metrossexual. Pelo contrário: para muitas regiões da Ásia, o domínio persa trouxe estabilidade e paz pela primeira vez.

“Os persas construíram estradas e palácios, hotéis e até parques. Codificaram leis e criaram o primeiro sistema amplo de cunhagem de moedas”, diz Strauss. Por outro lado,300 acerta em mostrar que os reis persas tinham uma imagem megalomaníaca de seu papel no mundo. Outra das inscrições oficiais de Xerxes, por exemplo, diz o seguinte:


“Um grande deus é Ahura Mazda, que fez esta terra, que fez o homem, que fez a paz para o homem; que fez de Xerxes rei, um só rei de muitos, um só senhor de muitos.”

E, como ninguém é de ferro, o harém de beldades seminuas que acompanha o Grande Rei no filme não está muito longe da verdade: os nobres persas costumavam levar suas concubinas a tiracolo durante as guerras.

Como contraste com o efeminado Xerxes que irritou os aiatolás, os soldados de Esparta, no filme, são o símbolo máximo da macheza. Mas a gana de retratá-los como os guerreiros mais durões do planeta acaba produzindo muitas bobagens e alguns momentos de humor involuntário.

Para começar, apesar do acerto em mostrar a capa vermelha, a lança e o escudo (partes básicas do kit de batalha espartano), Leônidas e seus homens passam o tempo todo com o tórax musculoso de fora. Além dos riscos óbvios de combater desse jeito (os espartanos de verdade eram espertos o suficiente para usar uma armadura peitoral), é muito improvável que um grego do ano 480 a.C. tivesse esse físico. E por uma razão muito simples: a dieta helênica tinha pouquíssima proteína animal (e certamente nenhum anabolizante). O espartano médio devia ser baixinho e robusto, com físico de maratonista, e não de Mister Universo.

O filme também mostra os meninos espartanos sendo tirados da mãe a partir dos sete anos de idade e passando pelo rigoroso treinamento militar (com espancamentos e combates corpo a corpo) que os transformaria nos soldados mais famosos da Grécia. Só há um porém: não se sabe se esse sistema draconiano (conhecido como a agogué, “criação”) já existia na época da batalha das Termópilas.

“Há indícios de que ele surgiu tarde em Esparta”, diz Robin Osborne, historiador da Universidade de Cambridge. “O problema é que só temos uma descrição completa feita por Xenofonte, que escreve por volta do ano 400 a.C.”, completa Cartledge. De qualquer maneira, nem Xenofonte diz que menininhos de sete anos lutavam até ficar ensangüentados: segundo ele, o treinamento de combate só começava na adolescência.

Assim como no caso de Xerxes, as cenas de Esparta têm seus momentos de acerto. O papel relevante desempenhado por Gorgó (Lena Headey), a mulher do rei Leônidas, ajuda a mostrar como a condição feminina em Esparta era bem melhor do que nas outras cidades gregas. E, embora não estivessem lutando contra um monstro desalmado, os espartanos de fato ajudaram a preservar a civilização grega e permitir que ela chegasse a seu auge, no primeiro experimento de liberdade política e pensamento da história humana.

Os 300 ajudaram a “salvar” o Ocidente

Dê um desconto para o sangue espirrando para todo lado, os monstros de computação gráfica e os soldados de tanguinha de couro: a história contada (ou melhor, levemente esboçada) no filme 300 é, apesar de tudo, um bocado importante. A superprodução narra o combate entre o gigantesco exército de Xerxes, o Grande Rei do Império Persa, e as pequenas forças da Grécia, sob o comando de 300 guerreiros de Esparta, no desfiladeiro das Termópilas. Um dos poucos acertos em cheio do filme é justamente mostrar como o confronto nas Termópilas foi fundamental para que a Grécia derrotasse o Império Persa, abrindo caminho para o auge da cultura helênica e para o fortalecimento dos valores que, até hoje, regem o mundo ocidental.

A briga entre gregos e persas começou muito antes do ano 480 a.C., data da luta nas Termópilas. Os dois povos já se estranhavam havia 50 anos, quando Ciro, o primeiro Grande Rei persa, conquistou as regiões da Ásia Menor (atual Turquia) onde viviam gregos. Segundo o historiador helênico Heródoto (nascido em 484 a.C.), Ciro não tinha lá uma opinião muito elogiosa sobre os gregos. “Nunca tive medo de homens que possuem um local de reunião no centro de suas cidades onde fazem juramentos falsos e enganam uns aos outros”, teria dito Ciro certa vez.

O tal lugar é a ágora, nome dado pelos gregos a uma mistura de praça do mercado com local de debates políticos e intelectuais. Para muitos historiadores, o comentário evidencia as diferenças culturais e econômicas entre os dois povos: os gregos já tinham uma civilização voltada para o comércio e na qual era possível para muita gente participar da vida política, enquanto os persas viviam num mundo pastoril, sob a autoridade absoluta de seus monarcas.

Mesmo assim, o começo do domínio persa foi auspicioso. Ciro e seus sucessores trouxeram paz e estabilidade à Ásia, apoiando a construção de estradas e a agricultura. Mas a falta de tato político dos funcionários do Grande Rei, bem como os pesados impostos, acabaram incentivando os gregos asiáticos a se rebelarem. Eles pediram a ajuda de seus compatriotas na Europa, e duas cidades – Atenas e Eretria – responderam ao chamado.Com esse apoio, os gregos da Ásia se rebelaram em 499 a.C., mas acabaram sendo derrotados. O Grande Rei da época, Dario I, mandou uma expedição punitiva para a Grécia. Eretria foi tomada facilmente, mas os homens de Dario I levaram uma sova humilhante de Atenas e tiveram de recuar. O monarca jurou vingança, mas morreu antes de colocar seu plano para isso em ação. E assim a tarefa ficou para seu filho Xerxes.

Esparta na liderança

Obviamente, Atenas era um dos alvos da vingança do Grande Rei, mas o objetivo final era submeter toda a Grécia ao Império Persa. Os motivos eram muitos: esperava-se que todo rei persa recém-chegado ao trono (e esse era o caso de Xerxes) ampliasse ainda mais os domínios de sua dinastia; subjugar a Grécia européia aumentaria a segurança das possessões gregas de Xerxes na Ásia, evitando novas ajudas a rebeldes; e parentes jovens e ambiciosos do rei já pensavam em lucrar com a conquista, tornando-se sátrapas (governadores) da nova província.

“De quase 700 cidades-Estado gregas que podiam ter entrado na resistência a Xerxes, só 31 efetivamente o fizeram”, conta o historiador Paul Cartledge, da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Tal resistência, ainda que aparentemente pífia, só se tornou possível com a liderança de Esparta. Essa cidade-Estado, que ficava no Peloponeso (o extremo sul da Grécia), era a mais poderosa da região na época, tendo montado uma rede de aliados que, como lembra Cartledge, englobava mais de metade das cidades que acabaram entrando para a resistência grega.

Há quem veja na formação dessa aliança, hoje conhecida como Liga do Peloponeso, uma política deliberada de Esparta para deter a ameaça persa. “Isso é provavelmente um exagero. Mesmo em 490 a.C. [data do ataque de Dario a Atenas], Esparta era provinciana e isolacionista demais para perceber com clareza essa ameaça”, diz Peter Green, historiador da Universidade de Iowa (EUA) e um dos maiores especialistas na história da invasão de Xerxes.

As forças de Xerxes provavelmente somavam mais de 120 mil homens em terra e cerca de 1.000 navios, uma escala de mobilização que os gregos nunca tinham visto. A única chance da resistência helênica era usar o terreno da Grécia em seu favor. Daí a escolha de lutar nas Termópilas, um desfiladeiro que, na sua parte mais curta, só dava espaço para a passagem de duas carroças lado a lado, e que era a única entrada viável para o centro do país. Ali, poucos homens podiam fazer frente a muitos.

Esse é um dos motivos pelos quais os espartanos só mandaram 300 homens, à frente de outros 7.000 soldados gregos de outras cidades. O outro era religioso: a batalha aconteceu durante a Carnéia, um festival dedicado ao deus Apolo durante o qual tradicionalmente os espartanos não podiam guerrear. Mas provavelmente também havia uma motivação mais sacana: Esparta não queria arriscar o grosso de seus homens para defender a região central da Grécia, enquanto o Peloponeso podia ficar desguarnecido.

No fim das contas, esse excesso de cautela e a ação de um traidor grego, Efialtes (que não tinha nada a ver com Esparta – ele era um morador da região das Termópilas – e nem devia ser aquele monstrengo exagerado de Miller), pôs tudo a perder. Mas o sacrifício dos 300 espartanos e de um de seus reis, Leônidas, inspirou a resistência grega a ir até o fim no combate. O resultado é que a marinha helênica, formada basicamente por navios atenienses sob comando espartano, acabou com a maior parte da frota persa em Salamina, perto de Atenas, cerca de um mês depois. No ano seguinte, na cidade de Plataia, Esparta finalmente mandou para o campo de batalha a maior parte de seu exército, sob o comando de Pausânias, sobrinho de Leônidas. Os soldados de Xerxes foram esmagados, e nunca mais um exército do Grande Rei pisaria na Grécia européia.

Vitória da liberdade

As causas da vitória final grega são tanto militares quanto políticas. No combate corpo-a-corpo, os guerreiros de Esparta eram imbatíveis graças ao treinamento rigoroso e à disciplina férrea; e todos os gregos contavam com armamento ofensivo e defensivo (grandes couraças peitorais, escudos redondos, lanças mais longas etc.) muito superior ao dos persas. E, claro, eram homens livres, com direitos políticos (como o voto) assegurados em suas respectivas cidades, ao contrário dos persas, que seguiam um monarca que era considerado o representante dos deuses na Terra.

Com o invasor expulso, as várias facetas da cultura grega chegaram a seu apogeu, principalmente em Atenas, cuja liderança foi tão importante no mar quanto a de Esparta em terra firme. Atenas se firmou como o primeiro grande experimento de governo democrático da história: seus escritores e artistas tiveram patronos e liberdade criativa para produzir obras-primas, e os pensadores que freqüentavam sua ágora lançaram as bases da filosofia. Sem a vitória de Esparta e Atenas contra os persas, essa herança crucial para o que pensamos e vivemos hoje talvez jamais pudesse florescer.

Fonte: http://ceticismo.net/comportamento/300-de-esparta-%E2%80%93-a-guerra-filme-x-historia/

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